Estava retocando meu batom (cor de berinjela), sentada no banco alto do ônibus parado no trânsito, usando a câmera do celular como espelho, quando fui tomada por um momento de autoconsciência e percebi que não estava sendo observada por absolutamente ninguém.
Eu já tinha tirado todo meu batom (berinjela) e duas selfies. Só no final da reaplicação percebi o quanto eu estava confortável fazendo tudo aquilo dentro do ônibus.
Tá, não é a primeira vez que eu faço ou refaço minha maquiagem dentro de um ônibus. Na faculdade me graduei primeiro em fazer full face (com contorno!), em pé, no trajeto de 15 minutos da Linha Diamante entre Osasco e a Lapa, e depois em Editoração.
Mas reconstituir o fluxo do raciocínio que me levou a essa sensação de quase abandono completo deve ser um pouco mais simples para todas que conhecem esse exato estado de hipervigilância. De se sentir observada, assistida, lembrada constantemente da própria existência, mesmo que num ambiente relativamente seguro. Independente da sensação estar acompanhada por um único poste de luz amarela piscando ou pelo sol do meio-dia.
Hoje, pra algumas de nós, a sensação de estar hipervigilante é tão parte da nossa natureza que nem nos damos conta do quanto estamos sempre conscientes de tudo que acontece a nossa volta. Mas, de qualquer forma, no banco alto de um Santa Brígida qualquer, me peguei pensando: envelhecer é estar segura.
Ahn?
Ok, ser mulher é nunca estar segura. Mas num universo de epifanias produzidas por um batom líquido vencido, repito em voz alta: quanto mais velha somos, mais segura estamos.
Além das questões individuais e do que aprendemos na dura caminhada da condição feminina e tudo o mais que nos ajudou a construir uma carapaça como as de um tatu-bola para enfrentar a realidade de existir como mulher na sociedade, a não receptividade do mundo para a mulher mais velha torna o ser 30+ uma experiência surreal (e meio deliciosa) de invisibilidade.
Deixar de ser interessante para o olhar masculino por não me encaixar mais na mesma juventude dos horários alternativos de passeios pela cidade, nas saias de couro com bota de cano alto e meia até o joelho ou por não aparentar estar em qualquer lugar entre 12 e 19 anos tem o sabor amarguíssimo da liberdade feminina.
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Entre o fim da adolescência e o início da vida adulta, eu rejeitei todos os exemplos de mulher adulta que a indústria cultural me ofereceu. Cresci rodeada de mulheres mais velhas, então naquela época achava Sex and The City e Bridget Jones as coisas mais cafonas que existiam. Séries e livros e filmes que minhas tias viam. Credo.
Hoje, já mais velha, notei a distância abismal entre as narrativas e a minha realidade e, mais uma vez, passei pela referência sem olhar duas vezes. Mas de longe analiso os dois exemplos que remontam mulheres que têm relacionamentos completamente diversos (e opostos) com si mesmas e com o mundo ao seu redor, e entendo o frisson (e o zeitgeist) da liberdade da mulher balzaquiana.
Eu tenho só 31 anos. Sou de uma geração que não acha ter 30 anos é ser velha, e pessoalmente lembro de um desejo febril que tinha durante a infância de efetivamente envelhecer. Um desejo menos De repente 30 e mais Divinos segredos. De passar horas alisando a pele já enrugada da minha vó e sentindo uma fascinação meio ansiosa… quando será que eu vou ficar assim também?
Eu nunca tive medo de envelhecer, mas enquanto era mais jovem sentia o medo condicionado à liberdade da juventude e ao ser mulher o tempo inteiro.
A verdade é que a sensação de invulnerabilidade causada pelo meu batom foi breve. Passou assim que eu notei que ela estava lá. Um efeito placebo da própria existência.
Isso porque eu sei que o mundo — o homem — não perdoa as mulheres que envelhecem.
E as estatística também não perdoam: em 2022, 61,4% das vítimas de violência sexual tinham até 13 anos.
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Hoje, a caminho do trabalho, fui tomada por esse sentimento de invulnerabilidade ao perceber que não devo aparentar uma idade muito distante da que eu realmente tenho.
Um momento de alívio individual que durou 10 segundos, seguido por essa indigestão terrível que você acabou de ler.