Toda ansiosa de cartelinha (venlafaxina, 150 mg) já ouviu falar na fórmula milagrosa que envolve se esgotar fisicamente a ponto de induzir o cérebro à tela azul. Pelo que eu sei, o cansaço vende muito mais matrículas da SmartFit do que os benefícios cientificamente comprovados das mitológicas ondas de endorfina.
Mas vamos partir do princípio que eu não sei de nada, já que pra mim nenhuma das opções funciona: nada me faz questionar mais a minha própria existência do que o esforço físico. Do combo parede de espelho, EDM e luz branca, passando pela pista adesivada no chão das megalojas da Centauro e pelas famílias experimentando acessórios de esportes nos corredores largos da Decathlon, até as três voltas na pista bucólica chão de pedrinha do parque perto da minha casa, tudo me coloca em um estado profundo de meditação.
Mas é uma meditação meio eufórica, que talvez a supracitada Venlafaxina devesse impedir. Depois de um minuto na elíptica, eu quero saber se vou ter que fazer isso pra sempre. Aliás, vou ter que fazer isso amanhã? Por mais cinco minutos? Ainda faltam 12 segundos pra dar meia hora que eu subi nessa elíptica? Ainda faltam três segundos pra terminar 29 minutos e chegar na meia hora?
E eu ainda nem terminei o aeróbico. Se eu descrevesse a musculação pareceria impossível enfiar tantos pensamentos dentro de dois descansos de 30 segundos cada. Mas a verdade é que entre uma série e outra eu geralmente descanso pela metade. Em dez segundos do relógio da minha mente cabem 2.500 caracteres, o que é mais do que uma legenda de Instagram permite em 2024. Quem tem tempo pra tudo isso?
Se eu não pular da elíptica imediatamente por cima da catraca e fugir da academia, eu te garanto que eu arranjo tempo pra tudo isso. Quarenta minutos dentro de uma academia, acorrentada às minhas próprias intenções para o futuro, meu cérebro se transforma no que o ChatGPT tem potencial de ser em 2054. Ou um Oráculo de Delfos 2.0 ou completamente obsoleto.
Pra mim é dificílimo aceitar que eu preciso conciliar o exercício físico, que sempre vem acompanhado por essa autoflagelação mental, com todo o resto do caos que é simplesmente existir no hoje. E eu nem pensei de primeira no colapso climático ou no imperialismo estadounidense.
Sentada na cadeira do leg press, meus pensamentos vão para a 1h30 que ainda me separam da minha casa depois que eu terminar todos os outros exercícios. E que no dia seguinte, eu vou usar mais quatro horas do meu dia em deslocamento, como sempre. Mas afinal, o que é morar perto, não é mesmo? Quem banca morar perto do trabalho? Eu ia querer morar por aqui se eu bancasse? Eu ia querer me exercitar se a distância fosse de uma hora? Ou de meia hora? Bom, eu definitivamente teria que morar num bairro plano.
De qualquer forma, imagina só se um carro de aplicativo até a minha casa não custasse R$40, fora do horário de pico? Bom, ele custa, e sim, eu vou precisar pedir hoje. E eu meio que peço muito já. Mas porra, que cansaço, é tudo muito longe. E eu sei que mentalmente eu não aguento esperar 1h30 pra chegar na minha casa eu vou entrar em parafuso até porque hoje eu bebi tanto café que me deu tontura melhor eu descer dessa cadeira mas de repente se eu tirar o fone de ouvido melhora minha tontura mas daí eu vou me sentir ainda mais presente no local academia e aí sim eu vou entrar em parafuso — aliás qual será a origem da expressão entrar em parafuso the turn of the screw do henry james? o nome dele é henry james? acho que esse final de semana vou ver the innocents mas não lembro se the innocents é o primeiro filme inspirado no livro ou se é a prequel a prequel será que também tem inspiração no livro? dividiram o livro em dois? ah, deu 30 segundos, vou começar a próxima série.
Me concentrar no meu corpo, aparentemente, me causa uma descarga de ansiedade e/ou de adrenalina, ativa o modo fight or flight e faz meu cérebro primata entrar em polvorosa. Só que pra ser completamente honesta, minha arritmia começa quando eu passo a primeira perna pelo shorts de lycra.
E qual será a raíz de toda essa ânsia? Bom, Bial, a vida inteira meu corpo foi a pergunta que não calava. E a minha relação com ele? Só se falava em outra coisa. Menos na terapia. Na terapia a minha dificuldade de corporificar era um assunto constante. De me entender conscientemente como um ser físico, de ser algo além de uma câmara que ecoa pensamentos. Claro que eu larguei a terapia, mas a deliciosa ironia de toda essa condição nunca me largou, e dedico aqui meu diagnóstico de fibromialgia aos junguianos e freudianos entusiastas da psicossomática.
A fibromialgia é uma doença que afeta principalmente mulheres e por isso é pouco estudada e por isso não tem causa e por isso não tem cura. O sintoma mais notável é a dor crônica. E existe um jeito, muito mais eficaz do que os fármacos, de controlar os sintomas, e é ele mesmo, o exercício físico.
Na fibromialgia, o corpo, por motivos que comumente incluem o estresse, a ansiedade, o trauma e a depressão, é tomado pela dor. O corpo simplesmente cede à mente.
Se a gente pensar bem no exercício físico, o exato oposto acontece e a mente precisa simplesmente ceder ao corpo.
Todos os dias meu corpo suplica, em forma de dor, para que a minha mente ceda e que eu passe pela catraca da SmartFit. Mas a verdade é que na minha vida, por anos, eu condicionei minha mente a não ceder ao corpo. Eu trabalhei com dor, li, escrevi, tomei banho, comi, dancei, fiz compras, provas, aulas, ri, chorei, dormi e acordei com a dor. E pra ser ainda mais desnecessariamente sincera, outros tantos anos de trauma me enclausuraram nesse estado onde eu também não sou capaz de ceder à minha própria mente consciente. É claro que eu sei que eu preciso me exercitar.
Eu sei que eu preciso ceder ao corpo e as suas vontades e necessidades. Sentir os músculos em toda sua grandeza e complexidade física. Entrar em uma disputa de vida ou morte com a turbulência que acontece em mim diariamente do pescoço pra cima.
Eu sei. Por isso hoje eu saí do trabalho às 19h30 e ainda assim fui na academia. Fiquei meia hora me exercitando e escrevendo esse texto mentalmente. Cheguei em casa 21h30, mesmo de Uber.
Eu sei que eu preciso me exercitar. Mas na maioria dos dias, às 19h30, depois do trabalho, eu só quero desligar meu cérebro e chegar em casa. E na maioria dos dias eu só consigo chegar em casa.
*Sim, já fiz outros tipos de exercícios e todos me causam estafa mental. Menos natação, mas já parou pra pensar no quão milionária você precisa ser pra praticar natação três vezes por semana? Eu já.
Eu amei! Você me ganhou no "ansiosa de cartelinha", obviamente sou ( desvelafaxina 50mg) e já quero ler tudo que vc escreve. Bj
incrivelmente incrível ler o que sinto na maior parte dos meus dias de ansiosa overthinking que passa pela dificuldade de organizar o tempo, mas seguimos torrando dinheiro em viagens de carro por aplicativo.
amei <3